| Voltaire, Alexandre Dumas, e até Hollywood fizeram do famoso prisioneiro um indesejado gêmeo de Luís XIV. Três séculos após sua morte, os historiadores descrevem um "homem que sabia demais"...
Prisão da Bastilha. Um homem de cerca de 45 anos sai da capela da fortaleza. De volta para a sua cela, acostumado com o regime carcerário, ele desaba. Ataque cardíaco? Embolia pulmonar? Hemorragia cerebral? Provavelmente algo do gênero. A embolia parece ser a causa mais provável, já que o prisioneiro ficou encarcerado durante 34 anos sem fazer muitos exercícios, causando problemas de circulação. O sedentarismo parece ter provocado um inchaço das pernas:
“Ele tinha a perna um pouco grossa na parte de baixo”, ao que parece. Às vezes, ele tinha também dificuldades para respirar, como seu carcereiro, Bénigne Dauvergne de Saint-Mars, escreveu ao marquês de Louvois (secretário de Estado de Luís XIV) em 3 de maio de 1687, após a transferência do detento de Exilles para as ilhas de Lérins: “Fiquei só 12 dias na estrada, porque meu prisioneiro estava doente, ele dizia que não tinha tanto ar quanto desejava”. Certamente, as dificuldades respiratórias eram causadas pela máscara de aço e a lona encerada que cobria sua liteira. Esses dois sintomas podem ter sido de uma embolia pulmonar fatal: pernas inchadas e dificuldade de oxigenação, que levou a uma agonia rápida, de menos de 24 horas. Era o dia 19 de novembro de 1703.
- CERTIDÃO DE ÓBITO
Étienne du Jonca, tenente do rei na Bastilha, escreveu em seu diário:
“Na segunda-feira 19 de novembro de 1703, o prisioneiro desconhecido, usando sempre uma máscara de veludo negro, que o sr. de Saint-Mars, governador, trouxe consigo [em 1698] ao voltar das ilhas Sainte-Marguerite e que ele guardou durante um longo tempo, passou mal ao sair da missa, e morreu no dia de hoje, às dez horas da noite sem ter tido uma doença grave. O sr. Giraut, nosso capelão, o havia confessado ontem. Surpreendido pela morte, ele não recebeu os sacramentos e nosso capelão encorajou-o por um momento antes de morrer, e esse prisioneiro desconhecido, guardado por tanto tempo, foi enterrado terça-feira às quatro horas da tarde, 20 de novembro, no cemitério de Saint-Paul, nossa paróquia. Na certidão de óbito colocamos um nome, também desconhecido, e o sr. de Rosarges, major, e o sr. Reil, cirurgião, assinaram o registro”.
Ao lado, Du Jonca acrescentou: “Soube depois que ele tinha sido chamado no registro de sr. de Marchiel, e que pagamos 40 libras pelo enterro”.
Um senhor idoso estava muito abatido: o sr. de Saint-Mars, 77 anos, governador da Bastilha. Abalado, pois ele guardava aquele prisioneiro diariamente desde a sua chegada à fortaleza de Pignerol, em agosto de 1669. Saint-Mars, viúvo, cujo segundo filho acabara de ser fatalmente ferido na Batalha de Spire, no dia 15 de novembro de 1703, e já havia perdido o filho mais velho em combate, estava arrasado. Saint-Mars conviveu com o prisioneiro mascarado na Bastilha durante cinco anos.
O jornal La Gazette Hollandaise, de J. T. Dubreuil, do dia 9 de outubro de 1698, publicara: “Paris, 3 de outubro: o sr. de Saint-Mars tomou posse do governo da Bastilha, onde mandou colocar um prisioneiro que estava com ele” .
Em setembro de 1687, o monsenhor Louis Fouquet, bispo de Agde, irmão de Nicolas Fouquet, ministro do rei, escreveu:
“O sr. Saint-Mars transportou por ordem do rei um prisioneiro de Estado de Pignerol para as ilhas Sainte-Marguerite. Ninguém sabe quem ele é, há proibição de dizer seu nome e ordem de matá-lo se ele o falar... [Ele] estava trancado em uma liteira, com uma máscara de aço sobre o rosto, e tudo que se pôde saber de Saint-Mars foi que esse prisioneiro estava desde muitos anos em Pignerol e todas as pessoas que achamos que estão mortas não estão. Lembre-se da torre dos esquecidos de Procópio de Cesareia”.
Monsenhor Fouquet ficou apreensivo. Seria o sr. superintendente, que dizem ter sido abatido em 1680 em Pignerol, que estaria escondido sob aquela máscara?
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DUMAS, A BASTILHA E O MÁSCARA DE FERRO
A história do homem com a máscara de ferro é um dos episódios do livro "O visconde de Bragelone," de Alexandre Dumas, pai. O escritor, nascido em 1802, na ilha de São Domingos, no Caribe, e falecido em Paris, em 1870, gostava de mesclar a realidade histórica com a ficção. No livro, o rei Luís XlV, a rainha-mãe Ana d'Áustria, os cardeais Richelieu e Mazarino, e os ministros Fouquet e Colbert interagem com vários personagens ficcionais, numa rocambolesca trama de intrigas políticas, ambientada na Corte francesa da segunda metade do século XVII, época correspondente ao reinado de Luís XlV, o chamado Rei-Sol.
O episódio da máscara de ferro baseia-se na história verdadeira do homem que, no reinado de Luís XlV, passou anos confinado nas mais bem guardadas prisões francesas. O infeliz condenado, a quem os documentos oficiais só se referem como o "Prisioneiro", trazia o rosto coberto por uma máscara de veludo negro que lhe escondia a identidade. Estranhamente, era tratado com muita deferência por seus carcereiros, o que aponta para sua importância e sugere que ele seguramente era alguém da nobreza ou, talvez até, um membro da realeza.
Muito se especulou sobre sua identidade. O homem da máscara de ferro (ou de veludo) poderia ser um nobre inglês, chefe de uma malograda conspiração para depor o rei da Inglaterra, e que teria sido, posteriormente, aprisionado em França; ou um meio-irmão do rei Luís XIII que teria engravidado a rainha Ana d'Áustria e seria o pai verdadeiro de Luís XIV - a semelhança entre ambos teria causado seu confinamento por questões de Estado; ou o prisioneiro poderia ser um cortesão italiano de nome Marttioli, ministro da Corte de Carlos V e comandante da fortaleza de Monferrato, que, situada na fronteira entre a França e a Itália, era ambicionada pelo monarca francês por motivos estratégicos.
Com presentes valiosos, Luís XIV convenceu Marttioli a vender-lhe Monferrato pela soma de cem mil coroas. No regresso à Itália, Marttioli, numa crise de consciência, fez chegar informações da espúria transação às Cortes da Áustria, de Espanha e de Veneza, expondo os planos do soberano francês, que se viu obrigado a desistir de suas pretensões. Humilhado, ele mandou raptar o italiano e encarcerá-lo na prisão-fortaleza de Pignerol, em 1679, sob a guarda de seu diretor, o senhor de Saint Mars. Os registros do fato afirmam que o prisioneiro lá chegou com o rosto encoberto.
Documentos datados de 1694 afirmam que, ao ser nomeado diretor da prisão da ilha de Santa Margarida, Saint Mars levou consigo três prisioneiros, um deles mascarado. Numa correspondência a Saint Mars, o ministro da Guerra de Luís XIV afirma: "Vossa Senhoria sabe da importância de um dos vossos prisioneiros."
Seguindo a trajetória do homem com a máscara, vamos achá-lo quatro anos depois em Paris. Em setembro de 1698, o lugar-tenente do rei, na prisão da Bastilha, escrevia, no diário da fortaleza: "Hoje chegou o novo diretor desta prisão, o senhor Bénigne de Saint Mars. Com ele veio um prisioneiro com o rosto coberto por uma máscara de pano negro. Fui informado de que o homem está sob sua guarda desde a época de seu comando na prisão-fortaleza de Pignerol, no Piemonte."
O misterioso prisioneiro permaneceu na Bastilha por cinco anos, até a noite de 19 de novembro de 1703, quando morreu de febre, provavelmente por ter ficado vestido com as roupas que a chuva molhara naquela manhã, no momento em que ele retornara à cela depois da missa. Durante esses cinco anos, ninguém o viu sem a máscara, nem pronunciou o seu nome. Na noite mesma de sua morte, todos os sinais de sua existência foram apagados da Bastilha: seu mobiliário foi destruído, seus míseros pertences queimados, e as quatro paredes da cela, onde ele gravara palavras e frases, foram pintadas de novo. Alguns dias mais tarde, o lugar-tenente do rei anotou que o prisioneiro desconhecido fora sepultado no Cemitério de São Paulo, como M. de Marchiel, nome que nos recorda aquele do italiano que incorrera na ira de Luís XIV. Muitos estudiosos refutam a teoria de que o Prisioneiro fosse o italiano Marttioli e argumentam que sua prisão não era um segredo, já que, em muitas cartas, Saint Mars a ele se referiu, embora grafasse seu nome como Marttioly. Estes céticos preferem acreditar numa hipótese bem mais extraordinária: a do gêmeo idêntico do rei. Curiosamente, esta suposição surgiu com a leitura das memórias do cardeal Richelieu, presidente do Conselho de Ministros de Luís XIII. Nelas, ele menciona detalhadamente um duplo parto da rainha, na noite de 5 de setembro de 1638, acrescentando que a segunda criança havia sido dada aos cuidados da parteira e condenada a uma vida obscura e pobre. A Ana d'Áustria fora dito que o bebê havia morrido ao nascer.
Essas explosivas memórias deram margem a muita especulação sobre o destino do príncipe enjeitado. Baseados em evidências circunstanciais, uns acreditavam que, com o passar do tempo, a semelhança entre o jovem rei e seu gêmeo se tornara tão evidente que o último fora retirado de França e enviado a Londres para ser criado por sua tia paterna, Henrietta Maria, mulher do soberano inglês.
Lá, ele teria recebido uma educação digna de um príncipe e, aos 31 anos, ao tomar conhecimento de sua verdadeira identidade, juntara-se a um huguenote francês, chefe de uma conspiração protestante contra a França, integrada pela Inglaterra, Suécia e Países Baixos. O chefe huguenote prometeu ajudá-lo a conquistar o trono que era seu por direito. Infelizmente, o pretendente foi preso em 1669, logo após desembarcar em Dunquerque, e envia-do para a prisão de Pignerol, aos cuidados de seu diretor, o senhor de Saint Mars.
Documentos da época atestam que o senhor de Saint Mars foi, efetivamente, incumbido da guarda de um importante prisioneiro anônimo a quem deveria vigiar constantemente. Nesses papéis está estipulado que o condenado tinha que ser tratado com bastante respeito e receber boas roupas, livros, um violão e um criado particular. Havia, também, uma estranha recomendação: o rosto do homem deveria ser coberto por uma máscara de veludo preto sempre que a prisão recebesse visitantes ou quando ele viajasse acompanhando Saint Mars a um novo posto. Um historiador inglês, depois de exaustivas pesquisas sobre o homem aprisionado em Dunquerque, publicou, em 1910, sua conclusão: ele era Eustache Dauger, o criado particular do sr. Fouquet, superintendente das Finanças de Luís XlV, condenado à prisão perpétua por apropriação indébita de fundos do Estado e falecido em Pignerol, em 1680. O criado tinha acompanhado o amo, que, nos anos de confinamento, lhe confiara vários segredos da Corte. Por isso, ele fora mantido prisioneiro, mesmo após o falecimento do ministro. Eustache Dauger morreu na Bastilha, vinte e três anos depois.
Um detalhe, entretanto, contradiz a conclusão do historiador inglês: o huguenote, chefe da abortada conspiração contra a França, ao ser preso na Suíça, em 1669, confessara que o homem capturado em Dunquerque, por todos conhecido pelo nome de Eustache Dauger, e que se fizera passar por seu criado na Inglaterra, era, na verdade, o gêmeo de Luís XlV, oficialmente dado corno morto. Não há como negar a existência de um encarcerado, com o rosto encoberto, que viveu durante o reinado de Luís XIV O mistério é sua identidade. Quem foi o prisioneiro que exigiu tantos cuidados e que estranhamente, sendo tão perigoso, não foi executado? O prisioneiro que inspirou Alexandre Dumas? Teria sido o traidor italiano, Antonio Marttioli, ou seria Eustache Dauger, identificado pelo chefe huguenote como o irmão gêmeo do rei e, posteriormente, no princípio do século XX, como um simples criado do ministro Fouquet?
As poucas pessoas que, além do rei, conheciam a identidade do homem com o rosto coberto, a quem sempre se referiam como o Mascarado, morreram levando consigo o intrigante segredo. O interesse pelo enigma do homem da máscara de veludo pode ser comprovado por uma carta escrita, no final do século XVII, por uma princesa francesa a uma amiga na Corte da Inglaterra:
"Durante muitos anos viveu na Bastilha um homem oculto por uma máscara, com a qual morreu. Dois mosqueteiros mantinham-se sempre a seu lado para o matarem, caso ele a retirasse. Sem dúvida, houve uma razão que justificasse tal procedimento, pois, por outro lado, o prisioneiro sempre foi bem tratado, esteve comodamente instalado, e era-lhe concedido tudo quanto pedia. Jamais alguém conseguiu descobrir quem ele era."
FONTES:
1. "Reis, Viajantes e Vampiros – aventuras ao redor do mundo", por Lia Neiva. Ed.Bertrand Brasil, 2004
2. "O homem por trás da Máscara de Ferro", por Michel Vergé-Franceschi
Arte: O homem da máscara de ferro, 1872 - por Alfred-Arthur Brunel de Neuville (1941-1852), pintor francês.
Pesquisa: Luiza Voigt
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