| | Se você é fã do seriado “The walking dead" ou mesmo da série “Resident evil”, agradeça à George Romero. Sem ele, com certeza, hoje não teríamos tais séries ou, no máximo, Rick Grimes (o policial protagonista de “The walking dead”) seria apenas um explorador americano caçando escravos mortos-vivos numa plantação de cana de açúcar em alguma ilha caribenha. O fato é que George Romero criou o zumbi moderno, reinventando os mortos-vivos caribenhos. A fórmula criada por ele deu tão certo que praticamente todos os filmes de zumbis, pós-Romero, nada mais fazem do que atualizar a mesma história criada por ele e seu amigo John Russo. O zumbi Romeriano é tão perfeito que a mesma história vem sendo contada há mais de 40 anos, com personagens diferentes, e ainda mantém o mesmo frescor. Ainda somos capazes de apreciar os zumbis com o mesmo espanto do século passado.
Entretanto o zumbi moderno surgiu quase por acaso. A ideia original do jovem cineasta e de seus amigos era de fazerem um filme cult. Entretanto, perceberam que, assim, não teriam o retorno do dinheiro que investiriam. Então, resolveram rodar um filme mais apelativo, e o gênero escolhido para isso foi o terror. Os amigos de Pittsburgh não tinham como pagar pelos direitos autorais de monstros famosos, como o Vampiro ou Lobisomem. Foi devido a fatores meramente monetários, que o monstro escolhido foi o zumbi. Romero e sua equipe optaram pelos mortos-vivos justamente pelo seu baixo orçamento. Exatamente como os primeiros filmes, não precisaram pagar direitos autorais para Seabrook, pois sua obra era baseada em fatos reais. Romero se utilizou desse mesmo recurso. O zumbi seria assim o monstro que baratearia a produção, além de se livrarem da onerosa questão dos direitos autorais. A caracterização dos zumbis era simples e não pedia muito investimento, por isso se encaixava perfeitamente no orçamento do qual dispunham os produtores. Desta forma, surge “The night of the living dead" (1968). O filme conta a história de um grupo de sobreviventes que, por motivos variados, acabam se trancafiando dentro de uma casa no campo na tentativa inútil de escapar da horda de zumbis. O final é trágico, ninguém sobrevive. Porém, contrariando todas as expectativas, o filme foi um sucesso assombroso. Tornou-se um paradigma dos filmes de terror.
O filme foi rodado em preto e branco propositalmente, pois os produtores mais uma vez queriam esconder o baixo orçamento da produção. Em 1968, época em que foi filmado “A noite dos mortos-vivos”, já existia a tecnologia para a produção de filmes a cores, mas a pobreza dos efeitos especiais, planejados pela equipe de jovens cineastas, seria mais facilmente compensada se rodassem a pelicula no bom e velho preto e branco. Essa era uma técnica comum na época. Alfred Hitchcock se utilizou do mesmo artifício para rodar a famosa cena do banheiro em “Psicose”. O sangue que escorre água abaixo no filme é, na verdade, chocolate. Todavia, nada disso foi empecilho para o sucesso da fórmula de Romero.
Se por um lado o filme trazia uma má qualidade técnico-visual, o enredo acertava em cheio. Romero se utilizou de detalhes essenciais que garantiram o sucesso da obra. Do zumbi original havia apenas o fato destes serem mortos-vivos. Fora isso, o enredo era totalmente original e recriava a mitologia zumbi, como, até então, o ocidente os conhecera. Em primeiro lugar, a história não se passava mais em terras exóticas caribenhas. O terror fora trazido para perto, para o reconhecível e agora todo o horror acontecia em terras americanas. Os zumbis deixaram de ser meros autômatos que caminhavam sem rumo e sem propósito, obedecendo a um mestre feiticeiro. Agora eram movidos por uma fome insaciável por carne humana. Uma das ideias originais dos cineastas era de filmarem uma história sobre alienígenas comedores de carne humana. A ideia não era assim tão interessante, mas John Russo, junto com Romero, percebeu o potencial dos devoradores de carne e reaproveitaram esse detalhe transferindo-os para os mortos-vivos. A ideia deu tão certo, que alçou o filme a nível de clássico mundial do terror. Até então, os zumbis não eram carnívoros e essa foi a grande sacada de Romero e sua equipe. Os próprios produtores reconheciam que, antes disso, os zumbis eram um tanto decepcionantes, pois apenas atacavam as pessoas e as empurravam contra a parede, ou se tivessem um pouco mais de sorte conseguiam esganar suas vítimas. Mas agora os zumbis eram verdadeiras máquinas de matar. As cenas de canibalismo foram um choque para os telespectadores desavisados. Há relatos de sessões que foram tomadas pelo desespero de crianças, que choravam de soluçar perante o tamanho terror causado pelas cenas viscerais. Os pais, pobres coitados, achavam se tratar apenas de mais um filme bobo de escravos caribenhos. O filme era apelativo, mas foi propositalmente concebido assim.
Outro fator importante para o sucesso da obra foi a introdução do apocalipse zumbi. Desde então foi impossível divorciar a ideia de mortos-vivos e apocalipse. O fato é que Romero bebeu de outra fonte: o romance “Eu sou a lenda”, de 1954, escrito por Richard Matheson. O livro foi adaptado várias vezes ao cinema, entre eles numa super produção estrelada por Will Smith. No romance original, as criaturas se pareciam muito mais com vampiros do que com zumbis. Romero inscreveu seus mortos-vivos nesse cenário apocalíptico e pronto. Estava criada a fórmula do zumbi moderno. Hoje em dia todas as histórias de zumbis, tanto em filmes como livros, jogos ou quadrinhos, seguem a risca esse roteiro. “A noite dos mortos-vívos” modificara completamente o conceito de zumbi e ditou as regras do gênero até os nossos dias.
Outro filme de grande importância da cinematografia de George Romero é “Dawn of the dead” (Despertar dos mortos). O filme foi concebido por Romero como a sequência de “A noite dos mortos-vivos”. Nessa película, o diretor tece forte crítica à sociedade consumista, ao retratar um grupo de sobreviventes que se trancafiam dentro de um Shopping Center. Com certeza, você já deve ter visto algo parecido. “Madrugada dos mortos”, (2004), é a refilmagem desse clássico sem o teor crítico da obra e muito mais focado no terror e na ação, e com muito mais cenas de violência, diferentemente do filme original, que possuía uma veia mais cômica. O anime japonês “High school of the dead” também faz referência ao filme de Romero, ao situar seus personagens num shopping durante alguns episódios.
Romero ainda escreveu duas sequências para sua “quadrilogia”. Foram elas: “Dia dos mortos” (1983) e “Terra dos mortos” (2006), ambos, filmes de sucesso. É indiscutível o papel de George Romero e sua contribuição para o gênero. Seu estilo foi imitado de tal forma, que o cineasta Italiano Lucio Fulci teve a audácia de batizar um dos seus filmes de zumbis como “Zombie 2”, deixando a entender que seu filme era uma continuação de “Despertar dos mortos”. Isso só foi possível, pois em terras italianas, o filme de Romero estreou nos cinemas com o titulo de “Zombie”. Embora o filme de Fulci não tivesse antecessor, foi uma jogada realmente bem sucedida. É desse filme a bizarra cena de um zumbi lutando com um tubarão.
Os filmes de zumbis nunca foram famosos por ostentar boas produções. Na verdade, só a partir de meados dos anos 2000 que apareceram os primeiros filmes de mortos-vivos de grande orçamento. Durante a década de 1980, o gênero passou por outra pequena recessão. Poucos títulos sobressaiam nesse meio tempo.
Vale a pena ressaltar a comédia trash “A volta dos mortos-vivos”, de 1985. Na verdade, Romero havia perdido o direito de usar em seus filmes o termo “mortos-vivos”, fruto de uma briga judicial com um de seus sócios e produtores do primeiro filme. Devido a isso, todos seus filmes seguintes foram batizados com a mesma fórmula, “Despertar dos Mortos”, “Dia dos Mortos” e “Terra dos Mortos”. Embora Romero tenha produzido mais alguns filmes sobre zumbis, sua quadrilogia estava encerrada. As histórias posteriores não tiveram o mesmo sucesso dos antecessores (*).
Durante a crise da década de 80, o zumbi sobreviveu na cultura pop graças ao vídeo clipe “Thriller”, de Michael Jackson. O clipe reviveu os mortos-vivos e deu mais uns anos de sobrevida a essas criaturas. Até que a volta por cima se deu anos depois em terras nipônicas com o lançamento do game “Resident Evil”. O jogo foi declaradamente baseado nos filmes de Romero e trouxe de volta, e definitivamente, o zumbi para o mercado cultural mundial. O jogo foi um sucesso estrondoso que rendeu várias sequências e uma série de filmes. Depois disso, estava consolidado o papel do zumbi na cultura pop. A produção cultural com mortos-vivos aumenta cada vez mais ano após ano. Não há uma plataforma que ainda não tenha sido infectada pelo vírus zumbi.
Os mortos que caminham deixaram as terras haitianas e dominaram o ocidente. O primeiro passo foi dado com exploradores sensacionalistas como Willian Seabrook (ver post sobre o ZUMBI ZUMBI HAITIANO). Mas foi com George Romero que o zumbi ganhou forma e fama. E, aos poucos, devido a produções muito bem sucedidas, o fenômeno zumbi explodiu.
O zumbi é o monstro do século XXI. Não somente por ter sido criado há pouco tempo em relação aos monstros clássicos, mas por ser o melhor representante do nosso século. O zumbi traz consigo características próprias e que seriam impensáveis em outros tempos. Os mortos-vivos sabem fazer o jogo moderno. Mexem nos traumas corretos da modernidade. De certa forma, é um reflexo desse nosso tempo de crise em que o perigo global nos espreita a cada esquina com suas guerras, crises e atentados terroristas.
(*) Romero produziu outros dois filmes de zumbis que não estão diretamente ligados a sua saga original - são eles: “Diário dos mortos” (2008) e “Ilha dos Mortos’ (2009)
FONTE: "A Era dos Mortos-Vivos: Zumbis - Mito - Modernidade", por Eliel Berberino. Cultura em Letras Edições (2016)
Pesquisa: Luiza Voigt
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