| | “A questão é uma visão estratégica da universidade, a importância da universidade dentro dessa visão estratégica. As transformações pelas quais o mundo passou foram de tal natureza que viver numa sociedade do conhecimento, como se predizia, passou a ser verdade. E isso aconteceu com uma velocidade surpreendente.
Costumo contar, para não ficar somente em conjecturas gerais, que eu vivia nos Estados Unidos, em 1971, em Palo Alto, na Universidade de Stanford. Lá havia um Centro de Inteligência Artificial, que era pra nós como um brinquedo porque não sabíamos exatamente o que acontecia lá. De vez em quando, como eu tinha um amigo que trabalhava nesse Centro, nós íamos com as crianças ver o que estava acontecendo. Era difícil entrar no tal Centro. E havia lá uma placa que dizia assim: 'Cuidado, automóveis movidos sozinhos'. Era o começo da utilização das técnicas eletrônicas e da aplicação de todas essas técnicas nos processos mecânicos.
Hoje o mundo está totalmente permeado por esses instrumentos eletrônicos. A transformação da vida por causa da revolução das comunicações e das informações também mudou o mundo. Quando os historiadores forem marcar as grandes épocas históricas, o século passado acabou mais ou menos em 1970. As consequências políticas e sociais dessas transformações estão ocorrendo, mas começaram com mais visibilidade nos anos 1980. Eu costumo sempre citar por que eu me impressionei muito com a leitura do livro de um amigo meu, chamado Manuel Castells. Ele fez uns estudos para tentar responder por que o império soviético desabou. E todo mundo que acompanhou essa época ficou surpreso. Os sovietológos faziam uma porção de hipóteses sobre o que iria acontecer com a União Soviética. Analisavam as fotografias cada vez que havia um desfile na Praça Vermelha. A posição de cada um daqueles hierarcas era interpretada sobre quem ganhou prestígio, quem perdeu prestígio, etc. Havia um imenso esforço para difundir ideias de valores democráticos e libertários, muita pressão, corrida armamentista, tudo isso no seu conjunto faria supor que haveria uma enorme pressão externa para a derrubada do governo. Todo mundo fazendo as apostas sobre o que iria acontecer, mas a aposta é que haveria o enfrentamento entre os dois blocos, que terminaria por efetivamente derrubar um dos blocos e, no caso, os ocidentais torciam para que fosse o bloco soviético.
Muito bem, o que Castells nos mostra foi outra coisa. O que aconteceu? O mundo soviético desabou por dentro. E por que desabou por dentro? A hipótese levantada lá, com certa comprovação, é a seguinte: a União Soviética havia crescido violentamente em termos de desenvolvimento industrial e tecnológico, tinha mandado o homem à lua, tinha feito o Sputnik, e tinha uma capacidade bélica enorme. Enquanto isso, nos Estados Unidos estava ocorrendo uma revolução tecnológica, baseada nas novas teorias da comunicação, na questão binária, enfim, na digitalização. Houve uma grande discussão do ponto de vista marxista sobre aceitar ou não a concepção binária porque, enfim, não é dialética.
O comando soviético percebeu que estava havendo uma transformação de outra natureza, porque enquanto eles iam para o grande, os americanos foram para o pequeno. Quando o alto comando soviético descobriu isso, começou a fazer engenharia reversa, copiar o que os americanos faziam. Só que a velocidade das transformações era enorme, e aí entraram os japoneses, os coreanos, etc., e os soviéticos perderam a capacidade de competir tecnicamente. E mais, a sociedade soviética, por razões políticas, não tinha condições de absorver as consequências da generalização das comunicações porque todo o sistema autoritário estava baseado no bloqueio da informação. O fax era já uma revolução, imagine a internet, hoje. O Google está saindo da China, o que é difícil absorver. Isso foi o que, segundo Castells, iniciou a decomposição do sistema soviético.
Todo aquele mundo envelheceu em 10 anos, com todo o seu poderio. E por trás desse envelhecimento está é uma revolução que se deu dentro das universidades. A transformação é imensa e as consequências continuam por aí. Eu até acho que a universidade, nesse sentido, é capaz de produzir essas transformações com rapidez e produzir efeito na sociedade. Em nenhuma situação houve um progresso institucional maior do que nos Estados Unidos. Qual é a especificidade, a meu ver, que faz da universidade norte-americana realmente um instrumento de mudança e de adaptação tão rápido? Eu acho que é a autoconfiança da universidade como instituição, o que não a inibe de entrar em contato com a sociedade. É normal, nos Estados Unidos, que os universitários entrem em contato, façam parte de conselhos governamentais, de grupos de trabalho e que façam um contrato com uma empresa para desenvolver alguma pesquisa. E não passa pela cabeça do professor ou do aluno de uma universidade norte-americana que ele esteja sendo comprado pela empresa ou cooptado pelo governo. Essa plasticidade, essa quase possibilidade de ser uma ponte é que permite que a sociedade norte-americana receba um impacto muito forte e se adapte com certa rapidez, e que os desenvolvimentos científicos se espalhem pela sociedade.
A universidade norte-americana é quase como um jardim zoológico, eles trazem todo mundo de todos os lados e colocam ali a etiqueta: esse é brasileiro de origem socialista, de presente anarquista e futuro incerto, põe aí. Você fica lá, livre, faz o que você quiser. E traz o coreano, traz o russo, traz não sei quem. Vocês estão provavelmente acompanhando que as universidades norte-americanas estão se globalizando num sentido muito específico. As grandes universidades estão pegando como requisito, para que a pessoa se torne graduada, que ela passe um ano em outro país. Todas as grandes universidades têm programas segundo os quais seu estudante tem que ter créditos num país estrangeiro para poder ter uma visão mais diversificada. Então essa universidade passou a ser realmente um produtor de modos de vida, de modelos culturais e geradora de capacidade de se adaptar a esses modelos culturais.
Ora, se olharmos o nosso caso aqui, brasileiro, veremos que a situação é um caso diferente. E nós temos alguma fragilidade nessa área. Em matéria de excelência – sempre há grupos de excelência – e como o mundo hoje é intercomunicado, as pessoas estão aqui, como estão em qualquer outro lugar, em contato, e se não estiverem em contato é porque não são boas na sua área. Quem é bom na sua área está em contato e não é só com os Estados Unidos, é com o mundo, agora com a China e onde quer que seja. Como o Brasil é um país populoso, esses grupos de excelência têm sido suficientes para permitir absorção e mesmo invento de algumas tecnologias. Nós temos avançado em diversos setores.
A nossa questão é que não podemos nos basear só nos núcleos de excelência e há outra questão para a qual devemos olhar com atenção. No mundo contemporâneo, de alguma forma o futuro tem que ser inventado. O futuro não está dado. Depois da revolução industrial, quando se capacitou a produzir “matérias-primas” ou a transformá-las, o mundo passou a mudar frequentemente e hoje, com muito mais intensidade, o futuro tem que ser antecipado, tem que ser criado, tem que ter, portanto, uma visão estratégica. Essa visão estratégica depende de gente com qualificação e depende da capacidade que essas pessoas qualificadas tenham de entender que é preciso generalizar o conhecimento.
Se as universidades não forem capazes de criar e promover modelos de convivência, modelos culturais, nós não vamos ser uma sociedade decente. Precisa haver um esforço grande de vinculação entre a universidade e a vida, porque isso será importante para a universidade, para a sociedade e para a vida. Além disso, eu acho que, se olharmos para o futuro, o que precisamos para o Brasil são decisões estratégicas. E essas decisões estratégicas vão ser tomadas em função também do conhecimento, de antecipação do futuro. Estrategicamente, ou nós realmente tomamos a sério a expressão que usamos sempre, de uma revolução na cultura, uma revolução na educação, ou vamos ter problemas. E no que consistiria essa revolução na educação? Em grande medida as crianças aprendem sozinhas mais depressa do que os professores imaginam. E os professores ensinam rotineiramente aquilo que eles aprenderam antes.
Essa revolução não é fácil porque os professores sabem ensinar aquilo que estão ensinando e vão resistir. É preciso dizer: olha, isso que você está ensinando não serve, tem que ser outra coisa. Quem vai dizer isso? Também na universidade é um pouco assim. Também na universidade nós variamos bastante entre o tradicionalismo e a ilusão de que um hipertecnicismo resolve. É preciso o comprometimento das pessoas com as suas responsabilidades sociais. Enquanto não conseguirmos aqui fazer com que também na universidade exista esse sentimento e que, também na universidade, nós tenhamos a coragem de discutir o que estamos ensinando.
Estou apenas levantando algumas ideias, mas acho que é chegado mais do que o momento de nos aprofundarmos mais nessas ideias, sobretudo agora que tem campanha eleitoral, tem mudança de governo, e parar de fazer simplesmente o nosso habitual, o quantitativo. Ele é importante, mas precisamos começar a olhar o qualitativo. É bom fazer exame para mostrar, além da sua parte técnica, a sua capacidade de produzir modelos culturais. Acho que temos, a partir daí, de começar a discutir o nosso futuro, que futuro nós vamos inventar. A questão é que nós somos muito – perdoem a expressão – muito rastaqueras em matéria de invenção de futuro. Agora, por exemplo, vivenciamos a questão do pré-sal. A única discussão que está havendo é a respeito da divisão de royalties de um petróleo que ainda não existe. Ninguém discutiu realmente o modelo proposto, se é que vale a pena a partilha ou a concessão. Eu não sei, pode até ser melhor a partilha, depende das condições, mas ninguém discutiu efetivamente. Se for feita a partilha quem é que vai exportar o petróleo? É o governo? Como? Não está discutido. Depois, esses recursos que vão ser divididos, serão pra quê? Vão ser ligados a alguma coisa? Não vão ser ligados a nada? Não há discussão nenhuma, só tem discussão, mortal, passeata, nas ruas do Rio de Janeiro, a respeito da perda de alguma coisa que ainda não existe. Não há discussão substantiva sobre como vamos extrair esse petróleo.
Eu mesmo escrevi, algum tempo atrás, um artigo sobre quem sabe isso nos permita substituir petróleo por neurônio. O importante são neurônios e não petróleo. O petróleo, financeiramente, utilizado para criar neurônios, se for bem investido. Ou iremos imaginar que nós, como fornecedores de matéria-prima, seremos grandes no mundo? Não. Seremos grandes no mundo se formos fornecedores de conhecimento, se formos realmente capazes de produzir conhecimento, inovar, etc., etc. Isso é que é o futuro. O petróleo pode ser base, mas está sendo entendido como estamos salvos porque temos petróleo e vamos começar a dividir o dinheiro. Nós não fizemos nenhuma reflexão estratégica e nós, que eu digo, não é o governo. Não estou querendo criticar governo algum, estou criticando a nós próprios, como sociedade, como país.
Costumo dar um exemplo que, para nós, é um contraexemplo. Eu morei no Chile por cinco anos e o Chile, atualmente, passa por uma transformação inacreditável. Sempre teve e continua tendo cobre, a base da sua economia, mas os chilenos inventaram uma coisa sensacional: exportar ostras para a França. Come-se ostra em Paris e a ostra saiu do Chile. Pode parecer uma coisa simples, mas é complicadíssima, uma logística tremendamente dificultosa, que exige conhecimentos biológicos bastante avançados. Tem-se que fazer muita coordenação, enfim, é uma proeza. E o Chile sempre teve vinho bom a vida inteira, só não tinha marca. Hoje eles têm marca. Entenderam que o mundo contemporâneo é do design, é da marca, e isso vale tanto quanto ou mais. E o Chile também exporta frutas, com marca, para a Califórnia, aproveitando a diferença de épocas de colheita. O Brasil também tem extraordinária produção de frutas, mas as nossas frutas têm pouca exportação e a marca é bem pequenininha.
Temos que pensar estrategicamente nessas questões. Qual é o Brasil que iremos inventar, porque é invenção. Assim como o Chile se reinventou e virou outra coisa, nós temos que reinventar o Brasil. Temos material bom para reinvenção, o que falta realmente é neurônio. Por isso, uma escola como esta aqui. Uma escola que inova e entra em áreas novas, criou uma tradição, criou gênios. Há muitas assim, se lembrarmos que temos hoje a Embraer competindo no mundo, porque a Embraer tem o ITA na retaguarda.
O Brasil teve recentemente uma revolução significativa. Enquanto um núcleo gritava por reforma agrária, estava ocorrendo uma revolução no agribusiness. E por quê? Por causa da Embrapa. A demanda não é só financiamento, é também empresário. A Embrapa tem, não sei exatamente hoje, mas no meu tempo a Embrapa tinha 1.000 doutores PhD trabalhando para desenvolver formas novas de plantio e de sementes. Nós reinventamos o cerrado. Até a nossa época o cerrado era inútil, era o que se ensinava, uma pena o Brasil tão grande e com tanta terra improdutiva. Hoje a base da agricultura e do gado está no cerrado e isso foi invenção de quê? Do neurônio. Foi pesquisa, foi ciência, foi a capacidade de avançar nessas áreas.
Então, acho que essa revolução estratégica de entender que o futuro vai depender da universidade e a universidade, para estar à altura do futuro, tem que produzir nela mesmo uma revolução. Se essa revolução ficar mesmo só na universidade e não vier de baixo, do ensino fundamental, do ensino técnico – que eu não tive tempo de falar – não vai haver realmente invenção de nenhum futuro. Temos de ter um sentimento agudo disso, da nossa responsabilidade social, por que se não quisermos só ganhar ou perder eleição, se quisermos ganhar ou perder uma boa sociedade, nós temos que discutir esses temas.” |
Astrologia
Lua Minguante (Clique para ver +)
Tempo decorrido : 14 ano(s) 1 mes(es) 15 dia(s) 
09/03 Pesquise 09 de Março/2010Pesquise o ano 2010 
Instituições 
Brasil Palestra com Roberto Muylaert na ESPM-SP
Lua Nova (Clique para ver +)
Lua Crescente (Clique para ver +)
Lua Cheia (Clique para ver +)
Publicação 
Literatura 
Jornalismo 
Reuniões 
